Esquizofrenia em doses homeopáticas

segunda-feira, setembro 25, 2006

Nunca mais...

Essas palavras saiam da boca dele cotidianamente.Mas, diferente de todas as outras pessaos sua retidão o impedia de voltar atrás. Ele nunca mais voltara àquele restaurante onde fora mal atendido, nunca mais bebera depois daquela ressaca, nunca mais ligara depois da resposta atravessada, nunca mais suspirara depois da facada nas costas.

As pessoas chegavam até a temer seus "nunca mais", sabiam que não teria uma volta. O apelido de corvo caiu como uma luva.

Até que ela apareceu. Ele falava "vamos", ela dizia "sim" e eles ficavam. Ele falava "fiquemos", ela dizia "sim" e eles iam. Ela falava "não" e sim, ele continuava, porque ela não o deixava parar.

Até que um dia ele cansou e disse "nunca mais". Ela disse ok, lhe deu um beijo e perguntou: "Me pega amanhã?"

Ele perguntou: "Que horas..."

quarta-feira, setembro 06, 2006

Bolhas de sabão

Os amigos certamente o chamariam de viado se o vissem rindo como uma criança ao tomar seu banho de espuma. Banhos de espuma definitivamente é uma viadagem sem tamanho. Mas mesmo assim ele precisava desses banhos. Ninguém jamais entenderia o que se passava na sua alma durante esse ritual.

A cada bolha que voava quando ele batia freneticamente as mãos na água uma parte dele mesmo voava. Voava, saía dele e estourava, levando uma faceta de sua existência.

Ele sempre imaginava que era como descascar uma tangerina. Não aquelas ponkan grandes, de casca grossa, que numa primeira puxada já praticamente se tirava a casca inteira. Estava mais pra uma murkote, de casca fina, que se descasca com dificuldade e em pequenos pedaços.

Nesse banho já tinham ido as bolhas da autocrítica, da paixão, e do orgulho.

De repente voa uma bolha pequena, toda torta e feia. Ele a abocanha rapidamente. O gosto é amargo, como o sabão. Mas ele não poderia viver sem um pingo de amarga autoestima.

O segundo parto do Andrade.

Foi como uma epifania. Depois de escorregar numa mancha de óleo na rua, descendo do ônibus e entalar na boca de lobo pela cintura, Andrade viu tudo.

Saindo com a ajuda dos braços, todo sujo de óleo, água e limo, ele percebeu que naquele exato momento ele havia nascido de novo. Não, não foi algo como uma experiência de quase morte. Nem risco de quebrar uma perna ele teve. Foi uma reedição do seu parto. Saiu do útero dos esgotos para uma nova vida. Afinal, aos 54 anos, funcionário público xinfrim, uma família tediosa e normal, uma casa tediosa e normal, num bairro tedioso e normal, com um salário tedioso e normal e uma vida tediosa e normal, sem sonhos, apenas algo como aquele incidente poderia colocá-lo a pensar.

Onde teria ido parar o Andrade adolescente, jovem, cheio de planos, sonhos, paixão? Aliás, seu nome era Jorge, Jorginho nos bons tempos, Gegê na boca das paixões juvenis. Em que momento ele havia se perdido? Aquele era seu segundo parto e ele não permitiria que essa segunda vida se perdesse como perdeu a primeira, no meio do caminho. Queria novamente o gosto da aventura de viver.

Entrou numa loja da Hering que ficava a duas quadras do ponto onde nascera de novo. Chamou uma atendente:

"Queria ver uma camiseta", disse ele.

"Ok senhor, qual o tamanho?", retrucou a atendente.

"GG, mas dessa vez, uma REGATA!"

...

Passos

Ele caminhava por uma avenida plana. Desde que perdera os pés tinha uma certa dificuldade pegar subidas.

Não usava uma prótese daquelas que imitam os pés, com sapatos e tudo. Ao contrário pareciam mais pernas de pau, com pontas finas. Os passos ficavam mais curtos. Sabia que tinha cometido um erro no dia que forçou o "acidente" para que lhe amputassem as pernas. A medida certa seria acima dos joelhos. Um erro de cálculo lhe fez perder apenas os pés. Perder? Não, aquilo já era algum ganho. Talvez não o ganho integral com o qual sonhara, mas um ganho por ter conseguido seu intento. Nenhum médico tinha atendido seu pedido: "Corta ó. Corta as duas mais ou menos aqui no meio das coxas".

Bando de idiotas. Jamais entenderam o suplício que aquelas pernas longas lhe causavam. Não lhe era suportável a idéia de que, pra ir de um lugar ao outro ele tinha que perder aproximadamente um metro a cada passo. Um metro de chão, de vida, que ele pulava como se não existisse. Não, cada passo era uma lacuna na sua existência e ele não conseguia conceber a idéia de deixar uma vida de lacunas atrás de sí. Ele tinha que tocar cada momento da vida, cada centímetro do chão. Suas pernas eram longas demais.

Ele seguia caminhando, passo a passo mal dado, meio desequilibrado. Mas já tinha dado um passo pra remover suas lacunas futuras. Nem se importava tanto em não conseguir mais subir ladeiras, apesar dessa dualidade lhe consumir tanto quanto as lacunas. Porque no seu sonho, além de uma vida sem lacunas ele queria chegar ao topo da montanha. Não aquele topo imbecil dos alpinistas que se fodem na subida por 15 minutos de contemplação antes de se foderem na descida. Não aquele topo de alpinistas sociais que sempre encontram um topo acima do que atingiram e não dão mais valor àquele em que estão. Ele queria o topo, onde sem andar, saberia que estaria acima de todos os centímetros do mundo e que teria abaixo de sí todas as lacunas, mas ao mesmo tempo nenhuma delas mais, pois as lacunas vistas de cima deixam de ser lacunas e passam a ser pequenas porções de decisões. Afinal, quando vc se joga de cabeça, desta altura, pode decidir sobre qual quer cair.

O incrível roubo do horizonte

Foi num final de agosto onde as pessoas normais não se lembrariam se ainda era inverno ou já era primavera. Independente das convenções do calendário o calor era insuportável, tornando cansativo o ato de viver. Algo como respirar dentro de uma sauna à vapor dentro de uma sauna seca.

A esperança já tinha morrido e o céu em tonalidades de verde cansava os olhos da imaginação. Eu queria uma passagem só de ida. Mas a passagem não ia me adiantar porque haviam roubado o horizonte. Não aquele figurado que fala de amplidão e de possibilidades, mas o literal que me devolvia o fôlego. Não existe horizonte sem azul.

Restava apenas as gotas de suor com sabor de sangue que me escorriam pelo rosto, insistindo em entrar dentro dos meus olhos e fazê-los arder. Se ao menos o suor fosse amarelo, poderia ressussitar um pouco da esperança. Porque desde criança eu aprendí que se você misturar as cores azul e amarelo o resultado é verde. Se o suor fosse amarelo e não vermelho poderia eu duvidar do céu verde. Ele seria azul, verde seria apenas a minha percepção dele. Daí talvez o horizonte voltasse a existir e eu poderia pensar na passagem derradeira e sem volta.

Não sei o que te dizer...

Não, não me pergunte nada. Cale-se e aceite, simples assim. Eu não faço a menor idéia do que te dizer.

É como quando alguém com quem temos um contato esporádio e frio, sem o menor envolvimento. O cobrador de ônibus que vc viu umas 15 ou 20 vezes e acostumou a cumprimentar. O dono da banca de jornais onde vc compra a revista todos os domingos. Simples assim. Gente que vc tem conhecimento da existência e só. E num dado momento, quando vc menos espera essa pessoa abre seu coração e diz, por exemplo, que o filho ou a esposa morreu. A pessoa desaba na sua frente e se abre. Sabe como é? Pois bem, nessa situação vc se converte numa folha branca com um nada escrito em tinta branca. Vc não sabe o que dizer. Qualquer palavra que sair da sua boca será um som sem sentido, algo como um navio fantasma ou um trem que não leva ninguém. Um meio sem um significado.

Vc ainda insiste? Não, não espere. Sua espera só tornará as coisas mais insuportáveis. Não existe o tal de silêncio confortável. Silêncio são cacos de vidro espalhados no meio de pregos enferrujados pelos quais vc vai ter que caminhar. E caminhar descalço. E tua vacina antitetânica está vencida. E o chão está molhado com água salgada, talvez com um pouco de limão.

Não fique quieta então, não espere, não pergunte. Será que não estou sendo claro o suficiente? Não me olhe com esse olhar indagador, mesmo falando amenidades. Teu olhar pode furar como um milhão de agulhas. Não daquelas de costura, mas aquelas de injeção mesmo, com a ponta enviezada e ocas por dentro. Ocas tentando sugar algum sentido da minha alma. Para de me olhar.

Não fique quieta, não espere, não pergunte, não me olhe. E não suspire, suspirar é quase um grito, um grito no meio de uma algazarra com uma britadeira e uma briga de casal. Barulho que machuca e não deixa pensar. Eu quero dormir e todos os barulhos que teu suspiro faz não me deixam.

Não insista, não fique quieta, não espere, não pergunte, não me olhe, não suspire. Aliás, vá embora. Suma daqui. Não sei mesmo o que te dizer. Deixe eu olhar você indo, indo, ficando pequenina e sumindo na distância. Daí talvez, e só assim, eu lembre que tenho muito pra te dizer. Daí talvez eu saiba como. Talvez eu vire o orador da turma, o dono da verdade, aquele que ilustra e sabe dizer tudo sobre tudo.

Mas agora não, agora não faço a menor idéia do que te dizer.

Esquizofrenia em doses homeopáticas

Começa com um furo de tanto trabalhar mas embasado numa dúvida cruel que vai de encontro a questão de metas prum futuro próximo onde se tem que levar em conta que tem que virar hominho e deixar de ser adolescente mas porra não sei se devia ter furado mas a culpa foi do trabalho e chegar tarde em casa mas quem sabe hoje não faço a merda e foda-se bóra ser adolescente pro resto da vida que esse negócio de meta que tem gente que ouve e confunde com merda não é pra mim mas ninguém que ouça merda quando eu falo meta pode ser levado a sério porque me conhece e sabe que eu jamais falaria uma coisa dessas mas sabe isso foi só o começo de uma coisa que ficaria pior ainda porque depois do começo veio um dia de merda que fiquei bundando sem fazer nada do que devia além de descobrir que metí chifre num cara porque peguei a mulher dele que nem sabia que estava casada mas isso faz tempo nesse meio tempo depois do começo eu só descobri por acaso daí meio atordoado dei a mão a palmatória e resolví arriscar pra ver o que dava na maior das boas intenções pensando que podia ir de encontro a meta mas já sabendo que não ia então eu fui pra meter as caras mesmo e graças ao volume inconcebível de chope que tomei achei que ia ser interessante e no fundo foi uma merda mas depois fiquei tomando banho de piscina sozinho vendo o céu noturno encoberto de São Paulo e o frio em contraste com a piscina aquecida acabou valendo so duzentão porque afinal tem que se enxergar o lado bom das coisas que tirando isso não tinha mais nada que se aproveitasse e eu sou muito idiota de não aprender com meus erros porque de novo e de novo eu falo porra que merda que eu fiz mas foda-se porque teve o banho de piscina e no final cheguei em casa pra tomar um puta café da manhã e assistir a corrida que foi uma merda e cochilei depois que o Massa caiu pra último e acordei no final pra cochilar um pouco até o meio-dia e acordar todo torto porque ressaca quando você vai dormir com o dia claro é uma merda e fazer almoço mas daí foi engraçado porque pude zoar pra cacete um corinthiano que assistiu o jogo comigo e ficou puto porque adivinhei o placar antes do jogo começar e adivinhei que o pênalti não ia entrar e falei que o técnico ia cair com uns dois meses de antecedência mas mesmo assim curei a ressaca tomando cerveja e fui prum bar escuro com gente esquisita que eu já sabia que ia estar lá pra assistir um show de heavy com um monte de cabeludo na plateia e eu de cinza me arrependendo de não ter ido com a camiseta laranja dos Simpsons porque tinha um adesivo no espelho do bar escrito flaming moe's que era o mesmo da minha camiseta mas não tem problema porque já fui cabeludo mas descobri que não tenho mais 14 anos, nem 24 nem 34 e tou meio velho demais pra essa barulheira mas porra o moleque toca pra caralho e é um puta baterista e isso valeu o show mesmo tomando wisky falsificado e sabendo que ia acordar com dor de cabeça hoje de novo mas no fundo foi estranho mas bem legal tirando as merdas que aconteceram antes do banho de piscina em que não passei frio mas bem perto do final tive um contato meio frio que me deixou um pouco chateado mas tenho que aprender que as coisas são assim mesmo e seguir em frente porque não dá pra parar a vida toda a vez que eu vejo uma placa interessante porque a gente tem sempre que caminhar então podemos quem sabe voltar ao começo sem furo dessa vez porque senão vou viver numa eterna dúvida mas não sei ainda só sei que por hoje é só pessoal.

Paraty.

Era madrugada de terça-feira, 3:30 da madrugada e ele caminhava devagar pelas pedras irregulares de uma rua no centro velho, lá pros lados da ponta do cais onde a cidade era mais decadente e não tinha tantas lojas, pousadas ou restaurantes.

Arrastava uma lata amarrada em um barbante e caminhava devagar, tentando ignorar todos os sinais que remetessem ao século XXI. Não estava fazendo uma boçal viagem ao passado. Ouvir os ecos da lata batendo nas pedras e ver-se num ambiente de país colonial não era a tradução do conceito "sentir-se em outra época". O que ele procurava era simplesmente se sentir estranho. Estranho ao lugar, estranho a época, estranho a sí mesmo.

Não era possível ser estranho a sí mesmo em São Paulo. É impossível estar sozinho em São Paulo. São Paulo é um lugar de iguais, todos são iguais em suas imperfeições e em sua idiotice. Lá em Paraty ele tentava sentir-se estranho. Se odiava, com todo o ardor. A idéia de ter que conviver consigo próprio pelo resto da vida o entediava. Nesses poucos momentos ele se sentia um estranho e até conseguia sentir algum apreço por sí próprio. Aquele sentimento bobo de conhecer alguém e encontrar algum conforto na novidade de uma outra personalidade.

Chegando até a ponta do cais ele teve que fazer a volta. As lanchas modernas e a maior iluminação estragavam o clima. Ele podia até ignorar as lâmpadas elétricas do caminho mas na ponta do cais a lata não fazia mais eco e o ambiente não tinha mais aquela atmosfera opressiva das vielas mais escuras. Ele queria isso, opressão. Fez a volta pra refazer o mesmo caminho e acabou vendo ela.

Ele caminhou em sua direção, não, melhor, ele seguiu seu próprio caminho mas seu caminho o levava em direção a ela. Por um momento ele pensou tê-la visto em trajes de época, mas ela vestia um jeans, tênis e camiseta escrita "Lembrança de Paraty". Puxava pela mão esquerda um barbante amarrado em uma lata, da mesma forma que ele.

Cruzaram-se e não se olharam. Não se falaram. No passo seguinte as latas se tocaram, trocando o som de metal em pedra por metal em metal. O encanto foi embora. Ele largou seu barbante, sua lata e caminhou pra pousada, sem olhar pra trás. Não conseguiria mais se sentir estranho nessa noite. Nem estranho, nem sozinho, nem oprimido. Era forçado a ser igual, um tédio, um tédio.

Se tivesse olhado pra trás viria ela sumir. Bem, sumir não é o termo, porque ela nunca existiu. Existiam agora apenas duas latas amarradas em barbante, uma largada minutos atrás, outra deixada na noite anterior.

Quem era ela? A prova de que ninguém consegue fugir de sí próprio.

Por que eles podem me chamar de Deus

Porque conheço a solidão de saber tudo, estar em todos os lugares mas ver tudo de longe.

Porque apesar de saberem da minha existência os crédulos insistem em colocar palavras na minha boca, saberem meus desejos e meus desígnios apesar de nunca terem ouvido uma só palavra minha. Não tenho direitos sobre mim.

Na Biblioteca.

-"Quanto vc pagou pelo metro de capa dura?"

Edgard segurou o riso irônico e mais ou menos revoltado. Fernando era jovem, inconsequente e acéfalo. Logo, não podia existir qualquer forma de ironia ou sarcasmo na sua frase.

- "Você sabia que tudo isso, todos esses livros, no dia de hoje, isso tudo é uma coisa inútil."

Edgard fingia que não ouvia as afirmações de Fernando, enquanto despreocupadamente folheava uma das suas jóias, uma edição de "Crime e Castigo" de capa dura, de madeira, tradução feita em Portugal. Lisboeta pra ser mais preciso.

- "Hoje, você só precisa disso..." - continuava Fernando, mostrando o seu i-Tudo. Aparelhinho branco, de plástico, com 1 bilhão de sbrublesbytes, tela de cristal sólido, tocador de música digital, filmes, fotos, hiper-sexo e literatura digital.

-"Não Fernando. Você pode falar que livros estão arcaicos, ultrapassados. Nunca inúteis. São termos diferentes. Veja bem, vamos fazer uma comparação com o sexo. Hoje o sexo, pra fins reprodutivos que, convenhamos, é sua primeira função (mas não a única) é arcaico e ultrapassado. Os métodos de inseminação in-vitro permitem uma melhor escolha no feto em termos de sexo, saúde, precisão genética. Mas mesmo assim, o sexo não inútil não. Assim como os livros."

-"Bah, pra mim é tudo a mesma merda, inútil ou ultrapassado." - Gargalhou Fernando.

Edgard começou a golpear a cabeça de Fernando com o exemplar raro de "Crime e Castigo". Raro e pesado. Fernando tentava inutilmente se defender usando seu i-Tudo, com tela de bilhões de cores realistas.

Quando finalmente a cabeça de Fernando rachou e o sangue começou a fluir Edgard murmurou, colocando o glorioso Fiódor sobre a escrivaninha: "Quero ver agora você questionar a utilidade de um livro, palhaço."

Sentando em sua cadeira, Edgard abriu seu "Idade da Razão" com a certeza de que tinha razão em seu argumento e, afinal, tinha ajudado um pouquinho na evolução da humanidade, visto que Fernando não serviria sequer como doador de esperma.

Pensou mais um pouco e alinhou seu pensamento com a eterna pergunta de Sartre : "O que Camus pensaria sobre tudo isso que acabou de acontecer...".

Na têmpora!

Como sempre...

Acabei de abrir a porta e estou colocando a bolsa no aparador ao lado da porta.

- Quantas maneiras existem de machucar uma pessoa?

Carlos está sentado na poltrona perto do abajur aceso. Vejo o revólver em sua mão e ele levanta devagar. Fecho a porta e ando em sua direção, sem medo, sem surpresa. Carlos era assim mesmo.

- Quantas maneiras existem de machucar uma pessoa? Existem muitas, mas qual delas realmente machuca?

Não tenho medo, espero a piada. E acordo, ainda sentindo o mau hálito de Carlos, naquele sorriso que me machuca até hoje, sorriso irônico, que Carlos abriu segundos antes de dar o tiro na própria cabeça.

Sobre amizades, amores perdidos e esperança...

Acho que não sei amar. Amo, amo intensamente, mas não sei o que. Nem me amo tanto assim. Aliás, acho que a pessoa que menos amo sou eu. E não sei amar.

Sei me apaixonar. Sei falar horas sobre amor e sentimentos, mas não sei sentí-los.

Vivo de intensidades que eu mesmo crio, paixões vazias que torno arrebatadoras, amizades perfeitas que ignoro. Não fui feito pra conviver. Fui feito pra observar...

E é assim que eu sigo, observando. Vendo a vida passar num filme, onde posso ser crítico de jornal barato. Emitir minha opinião prás paredes, que esquecerão de tudo na próxima página.

Quero alguém, quero pessoas. Quero entrar de cabeça em tudo. Amizades, inimizades, ódios e amores. Só não sei o caminho. Não sei levantar da minha poltrona de crítico e pular de cabeça dentro da tela. Tenho medo da luz do projetor. Prefiro ficar aqui no meu cantinho escuro e confortável, reclamando da pipoca fria e do refrigerante quente. Questionando o talento dos atores, a previsibilidade da trama, as falhas dos diálogos e a fotografia péssima.

Preciso mudar de cinema. Preciso encontrar um roteiro. Preciso aceitar um diretor. Preciso viver num set. Preciso aceitar meu par romântico. Preciso deixar minha marca em filme.

?

Seja qual seja o seu desejo, no meu ensejo eu sou incompleto.

Não posso ser seu alicerce, já que eu caminho apoiado em palitos, que se quebram a cada passo, correr, nem pensar, fugir é apenas uma hipótese.

Por mais que eu tenha encarado diversas bucetas, carcomidas por sentimentos vagos, não quero voltar a nenhum útero, não tem volta. Só tem o caminhar sobre palitos até o pó.

Já lí "Oh, eu quero viver, respirar da alfazema o perfume, caminhar aberto sobre o sepulcro, qual branca vela n'amplidão dos mares. O seio alvo da mulher amada é tão cheio de aromas..."

Não, não lí! Lí parte e o resto eu inventei no fragor do momento, escroto.

Não te quero mais, não me quero mais, nem sei se quero. A ausência é apenas o papel da vítima, que adoro interpretar. Sei que é errado, mas é o mais cômodo. Como sala, cozinha e banheiro, apenas um dormitório. Pra dormir enquanto a tarde chuvosa cai.