Na Biblioteca.-"Quanto vc pagou pelo metro de capa dura?"
Edgard segurou o riso irônico e mais ou menos revoltado. Fernando era jovem, inconsequente e acéfalo. Logo, não podia existir qualquer forma de ironia ou sarcasmo na sua frase.
- "Você sabia que tudo isso, todos esses livros, no dia de hoje, isso tudo é uma coisa inútil."
Edgard fingia que não ouvia as afirmações de Fernando, enquanto despreocupadamente folheava uma das suas jóias, uma edição de "Crime e Castigo" de capa dura, de madeira, tradução feita em Portugal. Lisboeta pra ser mais preciso.
- "Hoje, você só precisa disso..." - continuava Fernando, mostrando o seu i-Tudo. Aparelhinho branco, de plástico, com 1 bilhão de sbrublesbytes, tela de cristal sólido, tocador de música digital, filmes, fotos, hiper-sexo e literatura digital.
-"Não Fernando. Você pode falar que livros estão arcaicos, ultrapassados. Nunca inúteis. São termos diferentes. Veja bem, vamos fazer uma comparação com o sexo. Hoje o sexo, pra fins reprodutivos que, convenhamos, é sua primeira função (mas não a única) é arcaico e ultrapassado. Os métodos de inseminação in-vitro permitem uma melhor escolha no feto em termos de sexo, saúde, precisão genética. Mas mesmo assim, o sexo não inútil não. Assim como os livros."
-"Bah, pra mim é tudo a mesma merda, inútil ou ultrapassado." - Gargalhou Fernando.
Edgard começou a golpear a cabeça de Fernando com o exemplar raro de "Crime e Castigo". Raro e pesado. Fernando tentava inutilmente se defender usando seu i-Tudo, com tela de bilhões de cores realistas.
Quando finalmente a cabeça de Fernando rachou e o sangue começou a fluir Edgard murmurou, colocando o glorioso Fiódor sobre a escrivaninha: "Quero ver agora você questionar a utilidade de um livro, palhaço."
Sentando em sua cadeira, Edgard abriu seu "Idade da Razão" com a certeza de que tinha razão em seu argumento e, afinal, tinha ajudado um pouquinho na evolução da humanidade, visto que Fernando não serviria sequer como doador de esperma.
Pensou mais um pouco e alinhou seu pensamento com a eterna pergunta de Sartre : "O que Camus pensaria sobre tudo isso que acabou de acontecer...".